domingo, 27 de julho de 2008

Parte II - A Limpeza

[Aviso: Antes de parte II: A Limpeza, Leia parte I - Préludio de Luz].



Acordou encharcado de suor. Muito medo. Acácio estava em seu quarto. Paz. Que pesadelo terrível, nunca sentira medo tão intenso como no pesadelo desta noite. O pesadelo fora tão forte que sua a cabeça doía intensamente e sua boca latejava, provocada pela secura. Droga, pelo menos o porre não fora sonho, fora realidade. Mas que coisa. Suas roupas? Precisava vê-las para ter certeza. Ao atravessar a cozinha, ainda com louças sujas do café da manhã do dia anterior, já pode sentir a fedentina que encontrava-se na área de serviço. Maldição como pudera rolar em urina e vômito numa só noite. Devia jogar as roupas fora. Não serviam mais, impossível tirar aquela catinga. Uma crosta de vômito secara justamente sobre a gola de sua camisa. Logo esta camisa que usara em datas tão especiais. Mas hoje não significam mais nada para sua vida, passageiras datas. Passado enterrado e presente cavando. Pegou uma sacola de supermercado e colocou as roupas já em estado de decomposição na sacola, então viu algo que fez seu coração parar por um instante. Era uma pena negra. Mas como assim uma pena nas suas roupas? Devia ser das pombas que viviam na região. Mas sua consciência o tocou por instante. Não existem pombas negras Acácio. Sentiu medo novamente.

Correu até o espelho do banheiro. Estava mais branco que o normal. Sua pupila estava dilatada. Seus cabelos bagunçados. A pena na sua mão. Por que a pegara? Por que a sentia? Não podia ser uma pena de pomba, era maior e mais pesada. Negra. Coçou a cabeça no lado esquerdo. Lembrou-se da orelha. Passou os dedos suavemente sobre ela e sentiu que ainda estava presa a sua cabeça. Porém algo se soltou em seu indicador. E começou e se mexer lentamente sobre sua unha. Receoso tirou a mão de trás da orelha e viu algo que temia muito. Um verme se contorcia sobre seu dedo. Maldição, o que significava aquilo? Tirou a roupa com voracidade e pulou para baixo do chuveiro em água fria. Começou a esfregar-se intensamente e mais vermes começaram a cair de sua orelha. Então como um turbilhão eles começaram a saltar dos orifícios de sua face. Sua sensação foi de total pânico. Milhares de verme se remexendo dentro de sua fossa nasal fazendo cócegas infernais. O som do movimento rítmico sendo sensivelmente captado por suas orelhas. O tocar de suas bocas úmidas em seus olhos lacrimejantes. A tosse, e vermes caem de sua boca anestesiada pelo pânico. Seu cérebro se moía a cada segundo, sentia-o como um gás, totalmente caótico, e seguindo a mesma tendência suas idéias. O pupilar, o movimento, a onda, eles fugiam. Mas fugiam de que? De quem? Não fora ele seu abrigo, fornecedor de alimento, sua vida?

Não pode mais ver os azulejos de seu banheiro. Ou eles teriam criado vida? Eles se movem. Rítmicos. Parecem divididos alguns com milímetros de comprimentos outros com metros. Corpos achatados outros cilíndricos. Todos se contorcem no chão, na ritualística passagem de abandono do hospedeiro. Era a dança da morte. Estavam dançando, satirizando e agradecendo.

A cabeça de Acácio queria explodir. Não tinha para onde correr. Ouviu passos em seu apartamento. Ótimo, vermes são exorcizados de meu corpo e de quebra algo invadem minha casa. Estava estático. Nu. Não podia se mover. Sua cabeça entrava em uma via espiralada que seu corpo não correspondia. O som dos passos aumentou. Dirigiam-se ao banheiro. A maçaneta se moveu. O ranger da porta fez seu coração trepidar em adrenalina. Um vulto por detrás do box formou-se. Tinha cerca de um metro e sessenta e cinco, sua mão movia-se em direção ao apoio. O portal começou mover-se.

- Nossa quanta sujeira. Com tudo isto no chão daria para escrever um jornal. Ai ai. Quer ajuda para terminar a limpeza?- Uma jovem de seus 23 anos, negra de cabelos encaracolados, ofereceu-lhe mão. Os olhos de Acácio moviam-se dementes. Buscavam auxílio. Havia somente a garota. Temia. Onde levaria toda esta insanidade? Caso contasse para alguém ninguém acreditaria, era delírio. Não estava bêbado, isto o preocupava.

- Não temas gado. Este é só primeiro passo para o processo de limpeza. Lembra de ontem a noite? Pois então. Vai despertar. Todo o processo cognitivo é doloroso. Porém recompensador.

Seus olhos arregalaram-se. Fora real. Não era um pesadelo. Toda noite de ontem realmente havia acontecido. O anu-preto e suas palavras enigmáticas. Quem seria aquela jovem? O anu? E que história é esta de limpeza? Não queria pensar em uma resposta. As respostas davam medo. Pensar era pesado.

- Acácio, querido. Sentirás a diferença em algumas horas. E depois tenho que levá-lo para um passeio no seu novo mundo. E fazer alguns testes. Descanse e depois venho a ti novamente. Mas antes de partir. Vou deixar-lhe um presente sobre sua cama. Venha logo tenho certeza que vai querer pega-lo.

A jovem deu-lhe as costas e partiu. Dúbia e intangível.

Seus dedos começaram a mover. Os vermes não estavam mais no chão. Sua cabeça estava leve. Muito leve. Sensível. Tinha, pela primeira vez na vida, a sensação de plenitude. Esquisito, um minuto atrás ela queria explodir, agora leve e aberta à incorporação de novas idéias. Levantou-se e caminhou. Nu e molhado. Seus pertences estavam todos no lugar. Porém não possuíam mais o mesmo significado. Cada móvel, cada foto, cada eletrodoméstico todos transfigurados. Possuíam formas diferentes. Significados diferentes. Aproximou-se da TV. Estava desligada, mas podia sentir suas sintonias e uma aura cinza plainava sobre suas antenas. Afastou-se. E voltou a caminhar para o quarto. Sua cama estava delicadamente arrumada. Um lindo envelope azul encontrava-se apoiado sobre seu travesseiro. Sentou na beirada da cama. Abriu o envelope. Dele tirou um papel azul também. Nele uma letra caligráfica, nem um pouco delicada, escreveu algumas frases perdidas.

Ainda bem que já podes sentir diferente. Sinal que não é de todo irreal.

Entretanto para provar-me a essência leve-me meias respostas sobre minhas simplórias indagações.

Cogito, ergo sum? Matéria pode pensar?

Encontre-as e traga-as até mim. Sabe muito bem onde me encontrar.

Continua...

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